A reação do Judiciário à fraude dos planos de saúde "falsos coletivos"

 
 
José dos Santos Santana Jr.*
 
O crescente problema dos chamados “planos falsos coletivos” tem alcançado relevância significativa no Poder Judiciário brasileiro, que vem consolidando entendimento no sentido de reconhecer a fraude subjacente a tais contratos. Uma recente decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) reforçou esse posicionamento ao vedar o cancelamento arbitrário de planos de saúde formalmente classificados como coletivos, mas que, na realidade, possuem natureza individual ou familiar. A medida representa um avanço relevante na tutela do consumidor e na contenção de práticas abusivas que, por anos, comprometem o equilíbrio das relações contratuais no setor de saúde suplementar.
 
A controvérsia decorre da utilização, por parte de operadoras de saúde, de contratos coletivos empresariais ou por adesão como instrumento de evasão da regulação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Tal prática permitiu às operadoras impor reajustes sem limitação e realizar cancelamentos unilaterais imotivados, afastando-se do controle público aplicável aos planos individuais.
 
O TJSP, entretanto, reafirmou a incidência da Lei nº 9.656/1998 a esses contratos, mesmo quando travestidos de coletivos, reconhecendo que a fraude na forma não pode suprimir a essência da relação jurídica. Deve prevalecer, assim, a proteção ao consumidor quando evidenciada a intenção de burlar a legislação setorial.
 
De modo consistente, o Judiciário tem reconhecido que esses contratos configuram fraude contratual, uma vez que sua estrutura busca contornar a regulação estatal e restringir direitos assegurados aos consumidores. Em situações em que o plano “coletivo” abrange número reduzido de beneficiários — geralmente membros de uma mesma família —, a jurisprudência tem determinado sua reclassificação como plano individual ou familiar, desconsiderando a denominação formal do contrato. O critério material relativo à natureza do vínculo entre os beneficiários e à finalidade econômica da avença prevalece sobre a forma jurídica.
 
Entre os elementos caracterizadores dessa fraude estão o uso de CNPJ apenas para fins de formalização da contratação, a inexistência de vínculo empregatício entre os beneficiários e a suposta pessoa jurídica contratante, a criação de empresas fictícias para viabilizar a adesão e a restrição da cobertura a número diminuto de vidas. Essas condutas não configuram simples abusos contratuais, mas verdadeiras fraudes à lei, afrontando princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana e a proteção ao direito fundamental à saúde, previstos nos artigos 1º e 6º da Constituição Federal.
 
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem papel central na consolidação desse entendimento. Em precedentes recentes, como o REsp 2.060.050, julgado em 13 de abril de 2023, a Corte reconheceu que planos com reduzido número de beneficiários e finalidade familiar devem ser equiparados a planos individuais, aplicando-lhes os limites de reajuste estabelecidos pela ANS.
 
O fenômeno dos falsos coletivos está intimamente ligado à retirada deliberada dos planos individuais do mercado, prática adotada por grandes operadoras como forma de escapar da regulação. O resultado foi o crescimento exponencial dos planos coletivos — de seis milhões para mais de trinta e sete milhões de beneficiários entre 2000 e 2025, segundo o Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS).
 
Essa expansão decorre do fato de que, enquanto os reajustes dos planos individuais são limitados pela ANS (6,06% em 2025) e o cancelamento unilateral é proibido, salvo em caso de fraude ou inadimplência superior a sessenta dias, os contratos coletivos não se submetem aos mesmos controles. Como consequência, muitos consumidores passaram a constituir CNPJs fictícios, inclusive na forma de microempreendedores individuais, apenas para viabilizar a adesão a planos “empresariais”. De acordo com o Procon-SP, essa modalidade já representa mais de 80% do mercado de saúde suplementar.
 
A reação judicial a essa distorção não se limita à reclassificação dos contratos. Diversos tribunais têm determinado a manutenção da cobertura assistencial durante tratamentos médicos em curso, mesmo após tentativa de rescisão contratual, aplicando a Tese 1082 firmada pelo STJ, segundo a qual a operadora deve garantir a continuidade do atendimento até a alta médica. Paralelamente, tem-se estendido a aplicação do artigo 13 da Lei nº 9.656/1998 a tais contratos, proibindo o cancelamento unilateral salvo em caso de fraude comprovada ou inadimplência superior a sessenta dias, mediante prévia notificação até o quinquagésimo dia. O artigo 51, inciso IV, do Código de Defesa do Consumidor também tem sido utilizado para invalidar cláusulas que autorizam a rescisão imotivada, assegurando estabilidade e previsibilidade ao consumidor.
 
No tocante aos reajustes, o Judiciário tem coibido aumentos baseados em índices de “sinistralidade” não comprovados. As operadoras vêm sendo compelidas a apresentar planilhas e demonstrativos financeiros que justifiquem os percentuais aplicados, sob pena de anulação do reajuste e devolução dos valores indevidamente pagos. Em decisão paradigmática, o TJSP anulou um aumento de 66,07% por ausência de comprovação técnica, substituindo-o pelo índice autorizado pela ANS e determinando o reembolso dos valores excedentes. Essa linha decisória reconhece que a soma dos reajustes por faixa etária e sinistralidade, quando desprovida de transparência, torna os valores inviáveis para a maioria das famílias, provocando exclusão social do sistema de saúde suplementar.
 
Ao reclassificar os falsos coletivos como planos familiares, o Judiciário assegura aos beneficiários a aplicação dos índices da ANS, a proibição de cancelamento imotivado e o direito à continuidade do tratamento até sua conclusão. Essas decisões fortalecem a incidência do Código de Defesa do Consumidor e o princípio da boa-fé objetiva, que impõe às operadoras o dever de agir com lealdade, transparência e equilíbrio contratual.
 
As recentes decisões sobre os chamados planos falsos coletivos evidenciam uma inflexão jurisprudencial de grande relevância para o setor de saúde suplementar. O Judiciário, ao reconhecer a fraude estrutural praticada por operadoras e restabelecer a prevalência da legislação protetiva do consumidor, reafirma o papel do Direito como instrumento de concretização dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da efetividade do direito à saúde. A partir dessa consolidação, torna-se inviável a manutenção de práticas empresariais que utilizem o disfarce contratual como meio de escapar à regulação estatal, reafirmando que o interesse econômico não pode se sobrepor ao valor jurídico maior: a preservação da vida e da integridade do ser humano.
 
*José dos Santos Santana Jr. é advogado especialista em Direito Empresarial e da Saúde e sócio do escritório Mariano Santana Sociedade de Advogados
 


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