Cláudio Puty:"Brasil não pode conviver com formas extremas de deterioração das relações de trabalho"

Fernando Porfirio

A definição sobre o que é trabalho escravo está agitando o Senado. De um lado, a agressiva bancada ruralista; de outro o governo. Uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) prevê que o imóvel que usa mão de obra escrava será confiscado e usado em programa de reforma agrária ou habitação popular e que o dono das terras não terá direito a indenização.

Mas, para a PEC começar a valer, não basta ser aprovada pelos senadores. Ela ainda precisa ser regulamentada. O Congresso é obrigado a aprovar outra lei que diga em quais casos os proprietários serão punidos. Pelo texto, a perda do imóvel só pode ocorrer se o dono for condenado, sem direito a recurso, por explorar diretamente o trabalho escravo.

A proposta também define o que é ‘trabalho escravo’. É nesse ponto que reside a divergência. O governo e entidades de direitos humanos querem uma definição mais abrangente para que jornada exaustiva e condições degradantes de trabalho integrem o conceito. A bancada ruralista diz que uma definição abrangente causa ‘insegurança jurídica’.

“De maneira alguma. Pelo contrário; ela sinaliza de maneira muito clara que o Brasil não pode conviver com formas extremas de deterioração das relações de trabalho”, afirma o deputado federal Cláudio Puty (PT-PA), em entrevista exclusiva ao Previdência Total. Puty foi presidente da CPI do Trabalho Escravo, na Câmara dos Deputados, quando enfrentou a dura oposição dos ruralistas.

“Não há previsão legal para a confusão entre uma jornada extensa, com não pagamento de horas extras, que é uma questão trabalhista; com a chamada jornada exaustiva”, completa o deputado. Ele acusa os ruralistas de pretenderem enfiar goela abaixo suas propostas de flexibilizar leis que protegem o trabalhador rural, diminuir a fiscalização do trabalho no campo e alterar o conceito de trabalho escravo.

Leia a entrevista:

A definição brasileira de trabalho escravo causa insegurança jurídica, como diz a bancada ruralista?

Cláudio Puty – De maneira alguma. Pelo contrário. Ela sinaliza de maneira muito clara que o Brasil não pode conviver com formas extremas de deterioração das relações de trabalho. Se provocasse essa insegurança, nós não teríamos apenas o número de pouco mais de 400 empregadores na lista suja do trabalho escravo, dentro milhões de empregadores rurais. O que temos, pelo contrário, é a consolidação de uma jurisprudência, depois de dez anos, com os primeiros cem casos de sentenças condenatórias, algumas com trânsito em julgado. Mudar isso agora seria retroceder esse processo à estaca zero.

Por que tanta celeuma em torno do conceito de trabalho escravo?

Cláudio Puty – Considero que por parte da bancada ruralista há um injustificado temor de que a fiscalização trabalhista possa cometer arbitrariedades. Isso não se reflete nas estatísticas. Não são apenas os auditores fiscais do trabalho que acompanham as ações. São também integrantes do Ministério Público do Trabalho, agentes da Polícia Federal e membros da Defensoria Pública da União. Além disso, as denúncias podem ser ou não acolhidas pela Justiça, dependendo da qualidade do trabalho feito por esses agentes públicos e com a garantia constitucional do devido processo legal.

No Senado, parece não haver divergência sobre a expropriação de bens, mas apenas em torno da abrangência do conceito de trabalho escravo?

Cláudio Puty – O temor injustificado da bancada ruralista é o primeiro aspecto. O segundo é o extremo conservadorismo que caracteriza esse bloco de parlamentares. Esse fato se mostrou cristalino quando no mês passado esse grupo na Câmara se recusou a homenagear o Chico Mendes, dando o nome do líder seringueiro ao plenário onde funciona a Comissão da Amazônia. Chegaram a afirmar que o nome de Chico Mendes seria uma infeliz escolha e que a história desse líder seria uma farsa.

É como uma cruzada contra novas relações de trabalho no campo?

Cláudio Puty – É um reacionarismo nos mínimos detalhes. E em terceiro lugar, é uma solidariedade empregadores que se utilizam de práticas pouco aceitáveis do ponto de vista das relações de trabalho e dos direitos humanos.

Nesse raciocínio, a senadora Kátia Abreu considera que o fato de trabalhadores rurais serem submetidos a uma jornada extensa pode não ser saudável, nem legal, mas não é, necessariamente, escravidão?

Cláudio Puty – Todo argumento da bancada ruralista é no sentido de caricaturizar aquilo que está estabelecido na lei. Não há previsão legal para a confusão entre uma jornada extensa, com não pagamento de horas extras, que é uma questão trabalhista, com a chamada jornada exaustiva. Ainda que uma jornada extensa possa, no limite, levar a uma jornada exaustiva. Mas não necessariamente em número de horas, mas em carga de trabalho. A jornada exaustiva é a que pode levar à morte. Temos exemplos, como no caso das trabalhadoras da indústria têxtil de São Paulo, que trabalham 16 horas por dia, muitas delas com os filhos ao seu lado, e mal saem de casa, só aos domingos.

Porque os ruralistas criticam tanto essas duas questões: jornada exaustiva e trabalho degradante?

Cláudio Puty – Não estamos tratando só da espessura do colchão, como eles tentam demonstrar. Estamos falando de atentado aos direitos humanos. Comer com os animais, beber água junto com o gado, morar em alojamentos sem as mínimas condições, ficar em tendas onde a temperatura pode chegar perto de 50 graus. Condições degradantes que incluem o não pagamento dos salários. São graves ofensas que ultrapassam a questão trabalhista e ferem direitos fundamentais. Por isso, está no Código Penal.

E por que batem na tecla da criminalização do trabalho?

Cláudio Puty – É porque, devido à fiscalização, a escravidão por dívida, o cerceamento a liberdade e ao direito de ir e vir são hoje exceções nos casos de trabalho escravo. A maioria dos casos, cerca de 70% a 80%, está enquadrada em jornada exaustiva e trabalho degradante. E, por conta disso, alterando esses dois itens, você impede que as ações fiscalizatórias autuem esses numerosos casos em que trabalhadores são cerceados em seus direitos.

Por que o sr. encerrou os trabalhos da CPI do Trabalho Escravo?

Cláudio Puty – Havia uma maioria de ruralistas no plenário da comissão. Para o presidente e o relator da CPI ficou muito claro que as críticas da bancada ruralista não condiziam com a verdade. Excesso de fiscalização, abusos, tudo isso não encontrava eco na realidade. A bancada ruralista ocupou dois terços do corpo da comissão com uma pauta que me pareceu absolutamente descabida para aquela comissão: flexibilizar leis que protegem o trabalhador rural, propor diminuição da fiscalização do trabalho no campo e alterar o conceito de trabalho escravo. Então, chegamos a um paradoxo: em vez de implementarmos um mecanismo para endurecer a fiscalização e erradicar essa vergonha que é o trabalho escravo no Brasil, eles queriam mudar o conceito para que aquilo que fosse encontrado na forma de trabalho escravo não fosse considerado como tal. Então, com o apoio do deputado Walter Feldman (PSDB-SP), relator da comissão, preferi encerrar os trabalhos da CPI sem votar o relatório final para evitar a aprovação de um relatório paralelo que estava sendo preparado pelos ruralista.
 



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