Marco Antonio Innocenti: Precatórios: abuso da (de)mora
Marco Antonio Innocenti*
Quando, em 31 de outubro de 2002, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) causou indignação e perplexidade à comunidade jurídica e aos credores do Poder Público ao decidir, em um recurso do Instituto Nacional do Seguro Social (RE n° 298.616-SP), pela suspensão dos juros de mora no período de 18 meses compreendido entre a data da requisição de pagamento do débito judicial e o final do prazo estipulado pela Constituição Federal para orçamento e liquidação do respectivo precatório — invariavelmente descumprido por Estados e Municípios —, deu-se asas à inventividade dos defensores de toda sorte de interpretação que criasse ainda mais privilégios aos devedores públicos.
Se a maioria dos Ministros da Suprema Corte fora convencida de que a mais singela consequência da inadimplência de uma obrigação reclamada em juízo — o pagamento de juros ao credor desde a citação inicial até a sua efetiva satisfação —, poderia ser suspensa por uma razão já em si voltada a beneficiar o Poder Público na liquidação do débito, evitando ser surpreendido com a realização de despesa não prevista no orçamento em curso (entendimento que acabou consagrado na Súmula Vinculante n° 17, que criou o chamado “período da graça”), então poderiam ser desenvolvidas igualmente outras tantas teses, nessa mesma linha de raciocínio, não bastasse as inúmeras faculdades processuais que colocam a Fazenda Pública em franca vantagem sobre os particulares, amesquinhando ainda mais o princípio da igualdade entre os litigantes.
No último dia 29 de maio, o STF julgou uma das teses que se seguiram (ARE n° 638.195-RS), desta vez, entretanto, decidindo pelo óbvio: é devida correção monetária do débito judicial requisitado do Poder Público, inclusive no período compreendido entre a data da elaboração da conta de liquidação e o seu efetivo pagamento, já que — e isso não é nenhuma novidade — a atualização monetária não representa mais do que a mera recomposição do poder aquisitivo da moeda em face da inflação, da mesma forma que exigida dos particulares na cobrança da dívida ativa.
Em breve, o Plenário da Corte Suprema julgará outro caso afeto ao regime da repercussão geral (RE n° 579.431-RS), onde se pretende, uma vez mais, alterar o cálculo das condenações judiciais com vistas à redução do valor dos precatórios, agora se discutindo se seriam devidos juros moratórios entre a data da conta de liquidação e a expedição do ofício requisitório, período muitas vezes bastante considerável, podendo alcançar vários anos quando a execução é embargada pelo próprio ente público devedor.
Busca-se, tal como em outras oportunidades, atribuir outra condição suspensiva à incidência dos juros de mora, agora a pretexto de um prazo concedido pela legislação processual para o Poder Público defender-se (CPC, art. 730), olvidando-se de que esse prazo, assim como tantos outros previstos pela legislação processual — alguns dos quais em dobro e mesmo em quádruplo a favorecer excessivamente a Fazenda Pública em juízo (CPC, art. 188) —, não pode ser considerado senão como ônus processual inerente ao exercício do contraditório e da ampla defesa, garantias constitucionais asseguradas aos litigantes em geral, jamais, porém, como termo suspensivo dos efeitos da mora constituída contra o réu com a citação inicial válida.
Em outras palavras, os prazos processuais de que dispõem o Poder Público em juízo, a exemplo dos particulares nas lides judiciais, não possuem aptidão legal para suspender a fluência dos juros iniciada com a citação, por isso não desobrigam o réu da prestação da obrigação judicialmente reclamada juntamente com os respectivos encargos até a satisfação total do débito.
Logo, a pretensão de não contar juros no período de que dispõe o Poder Público para ver julgados os seus embargos à execução, é tão infundada e abusiva quanto seria a de isentá-lo desse encargo durante o prazo de que dispõe para contestar a ação ou recorrer das decisões, ou ainda durante o tempo consumido pelos tribunais no julgamento dos recursos.
Outra questão envolvendo juros moratórios em precatórios também será discutida em breve pelo STF. Trata-se da Proposta de Súmula Vinculante (PSV) n° 59, formulada pelo Estado de São Paulo com o objetivo de estender o já excessivo e excepcional benefício da Súmula Vinculante n° 17, que isenta dos juros no “período da graça” os devedores que nele quitarem seus débitos, também às entidades públicas que o desrespeitarem, tornando sem nenhuma consequência o descumprimento do próprio prazo que se alega ter para justificar a não incidência dos juros.
Ao equiparar os maus aos bons pagadores, propondo-lhes o aproveitamento de excepcional vantagem já considerada excessiva e desproporcional mesmo para aquelas entidades públicas que vêm honrando os precatórios dentro do “período da graça”, a PSV n° 59 banaliza o próprio fundamento que consagrou o enunciado da Súmula Vinculante n° 17, ao argumentar, com evidente abuso da hermenêutica, que a suspensão dos juros naquele período conviria não apenas aos adimplentes, mas também — e sobretudo — aos devedores que descumprem o prazo para pagamento dos precatórios.
Oportuno lembrar que os juros moratórios constituem a única sanção imposta aos devedores públicos pelo tempo transcorrido entre a cobrança judicial da obrigação inadimplida e sua satisfação, que pode demorar décadas, não apenas pela lentidão e morosidade na prestação jurisdicional em si, realizada pelo próprio Poder Público através do Judiciário, como também pela interminável espera no pagamento do precatório, indefinidamente descumprido pela maioria dos Estados e Municípios brasileiros.
Por essa razão, não podem prosperar interpretações abusivas que ampliem restrições ou excepcionem ainda mais a incidência dos juros de mora na satisfação das dívidas judiciais do Poder Público, distorcendo o alcance da Súmula Vinculante n° 17, já em si uma indulgente exceção, para estender também às entidades públicas que postergam indefinidamente o pagamento dos precatórios, o mesmo tratamento que vem sendo dado pelo STF aos entes públicos que satisfazem seus precatórios dentro do prazo de 18 meses assinalado pela Constituição da República, sob pena da banalização da Súmula Vinculante n° 17 revelar a necessidade de sua revisão e cancelamento, já que, obviamente, não pode se prestar ao estímulo da inadimplência nem ao desprestígio dos valores e regras constitucionais.
* Marco Antonio Innocenti é presidente da Comissão de Defesa dos Credores Públicos do Conselho Federal da OAB e da Comissão de Estudos de Precatórios do IASP e Vice-Presidente da Comissão de Precatórios da OAB/SP – [email protected]
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