Jornadas de trabalho extenuantes geram indenizações por dano existencial

 
Caio Prates, do Portal Previdência Total
 
O conceito de dano existencial, ainda recente no Brasil, tem ganhado espaço na Justiça do Trabalho e se consolidado como tema central em debates sobre o equilíbrio entre produtividade empresarial e dignidade humana. Os tribunais vêm, de forma reiterada, reconhecendo que jornadas abusivas não impactam apenas o trabalhador, mas também a sociedade.
 
Um exemplo emblemático foi o julgamento recente da Terceira Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que manteve condenação de R$ 12 mil contra uma empresa alimentícia pelo excesso de jornada imposto a um caminhoneiro de Lins (SP). O trabalhador relatou jornadas de até 21 horas diárias, com apenas duas folgas mensais, o que inviabilizava qualquer forma de convivência familiar, prática de esportes, vida social ou até mesmo o simples direito de ir à igreja. Na ótica dos ministros da Corte Superior trabalhista, a extensão da carga horária, por si só, configurou violação ao direito fundamental à vida digna, sem necessidade de prova adicional de prejuízo fora do trabalho.
 
“Esse caso demonstra um amadurecimento da jurisprudência trabalhista”, avalia Carla Felgueiras, advogada especialista em Direito do Trabalho e sócia do escritório Montenegro Castelo Advogados Associados. Para ela, a decisão deixa claro que não se trata de banalizar o instituto do dano existencial, mas de reconhecer a gravidade de condutas abusivas. “Jornadas extenuantes não apenas comprometem a saúde e a vida pessoal do trabalhador, mas também ampliam riscos coletivos, como acidentes em rodovias. É um alerta de que o direito ao descanso e ao lazer não são privilégios, mas condições mínimas para a existência digna”, afirma.
 
Segundo os especialistas, o tema não é novo. A teoria do dano existencial surgiu na doutrina italiana no século XX e foi incorporada ao Brasil a partir dos anos 2000. Com a reforma trabalhista de 2017, os artigos 223-B e 223-C da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) passaram a tratar expressamente da reparação por danos à esfera existencial, que engloba a convivência familiar, a vida social, a prática de esportes e outras dimensões da vida humana fora do ambiente laboral.
 
Para Érica Coutinho, sócia do Mauro Menezes & Advogados, o instituto possui sólida base jurídica. “O dano existencial possui fundamento constitucional nos artigos 1º, III, e 6º da Constituição Federal, além de encontrar respaldo nos artigos 186 e 927 do Código Civil, que tratam da responsabilidade civil. No âmbito trabalhista, a CLT, por meio do artigo 223-B, reconhece expressamente a possibilidade de indenização por esse tipo de dano. Ele se configura quando as condições de trabalho prejudicam os projetos de vida do empregado, afetando suas relações pessoais e sua integridade física ou psíquica”, explica.
 
A especialista acrescenta que a jurisprudência já consolidou esse entendimento. “Há decisões antigas, já publicadas há mais de dez anos, nas quais o Tribunal Superior do Trabalho reconheceu o dano existencial causado pela não concessão de férias e por jornadas extenuantes, como no caso recentemente veiculado. Nessas situações, há lesão à personalidade e ao projeto de vida do trabalhador. A análise feita pela Turma do TST neste caso foi muito acertada por entender que a jornada de trabalho de até 21 horas configura ato ilícito do empregador passível de indenização. No caso concreto, a jornada extenuante exigida tem nuances que tocam a segurança e a integridade do trabalhador, que exerce a função de motorista rodoviário”, complementa.
 
Ruslan Stuchi, advogado e sócio do Stuchi Advogados, destaca que a decisão evidencia uma tendência de maior proteção ao trabalhador frente ao excesso de jornada. “O TST reconheceu que, em situações extremas, a intensidade da carga horária é suficiente para caracterizar o dano, independentemente de prova de prejuízo adicional. É um marco importante, porque sinaliza que a Justiça está atenta à realidade de setores onde o excesso de trabalho é regra, e não exceção”, observa.
 
Impacto
 
Stuchi também chama atenção para o impacto econômico desse tipo de condenação. “Para as empresas, essas decisões funcionam como um alerta de que a gestão de pessoas não pode ignorar os limites legais e constitucionais. O custo de indenizações pode até parecer pequeno em casos isolados, mas a repercussão coletiva pressiona companhias a reverem políticas de jornada e descanso, sob pena de prejuízos reputacionais e financeiros”, explica.
 
Para a advogada Carla Felgueiras, a tendência é que a Justiça do Trabalho siga delimitando parâmetros mais claros para a configuração do dano existencial. “É urgente que o Judiciário continue a firmar limites. O caso do caminhoneiro contra a JBS simboliza um passo importante nessa direção, reafirmando que a dignidade humana não pode ser atropelada pela lógica da produtividade a qualquer custo”, conclui.


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