Reconhecimento do trabalho infantil: um passo necessário para a reparação histórica no Brasil

 
João Badari*
 
Em julho de 2025, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) publicou a Instrução Normativa nº 188, um marco na história da Previdência Social brasileira. Entre diversas atualizações, a norma trouxe uma medida de profunda relevância social: o reconhecimento do trabalho infantil como tempo de contribuição para fins previdenciários, desde que comprovado. Trata-se de uma conquista simbólica e prática para milhões de brasileiros que tiveram sua infância marcada pelo trabalho precoce.
 
Pode parecer surpreendente que esse avanço só tenha ocorrido agora, mas ele dá resposta a uma realidade antiga e dolorosa. O Brasil ainda convive com milhares de pessoas que começaram a trabalhar na infância ou adolescência, muitas vezes por pura necessidade, em contextos de extrema vulnerabilidade social. Ignorar esse passado seria perpetuar a injustiça histórica de negar, por uma segunda vez, a dignidade a esses cidadãos.
 
Importa destacar: a medida não incentiva o trabalho precoce nem legaliza sua prática. Pelo contrário, ela parte do princípio de que não se pode punir o trabalhador duas vezes — primeiro, por ter sua infância violada; depois, por ver esse período desconsiderado no momento de sua aposentadoria. É uma correção moral e jurídica que reconhece a realidade do país com sensibilidade e responsabilidade.
 
O artigo 201, §1º da Constituição Federal assegura a dignidade da pessoa humana como pilar da seguridade social, além de consagrar o princípio da solidariedade. Trabalhadores que começaram sua vida laboral aos 10, 12 ou 14 anos — em lavouras, feiras, fábricas ou em atividades informais com suas famílias — não podem ser tratados como invisíveis. A nova norma reconhece que houve ali esforço produtivo, que contribuiu para o desenvolvimento econômico e social do país, mesmo sem o respaldo formal dos registros oficiais.
 
A averbação desse tempo, porém, não é automática. A norma exige comprovação robusta: documentos escolares com menções ao trabalho, registros sindicais, fotos, reportagens da época e provas testemunhais podem ser utilizados. A diferença agora é que o INSS reconhece expressamente essa possibilidade, conferindo mais segurança jurídica aos trabalhadores, operadores do direito e servidores do órgão.
 
Essa mudança normativa ecoa os princípios da equidade e da reparação. Num país que historicamente marginalizou os trabalhadores mais pobres — especialmente da zona rural e da economia informal —, a IN-188 é um gesto institucional que aponta para uma Previdência mais justa, humana e inclusiva.
 
Dados do IBGE revelam que mais de 1,9 milhão de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos ainda vivem em situação de trabalho infantil no Brasil. Mais de 700 mil têm menos de 14 anos — idade em que qualquer trabalho é expressamente proibido. A maioria dessas crianças está na zona rural e pertence a famílias negras ou pardas, o que evidencia o caráter estrutural e desigual do problema. Negar o reconhecimento do tempo de contribuição dessas pessoas é negar a própria omissão histórica do Estado.
 
No plano global, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que cerca de 160 milhões de crianças estejam submetidas ao trabalho infantil — o equivalente a 1 em cada 10 no mundo. No Brasil, os efeitos da nova norma devem ser sentidos especialmente entre segurados especiais, agricultores familiares e trabalhadores urbanos em atividades precárias. Muitos estão às portas da aposentadoria, e a possibilidade de averbação pode significar o acesso imediato ao benefício ou a continuação de anos de espera.
 
Agora, cabe aos advogados previdenciaristas, sindicatos, defensores públicos e instituições comprometidas com os direitos sociais fazer chegar essa informação a quem mais precisa. A norma existe — mas só se concretiza quando os trabalhadores tomam consciência de seus direitos e os reivindicam. Daí a importância das campanhas de orientação e mobilização social.
 
A Instrução Normativa nº 188 não reescreve o passado — mas oferece uma reparação possível àqueles que, desde cedo, carregaram o peso do trabalho nas costas sem o reconhecimento do Estado. Que este seja apenas o primeiro passo rumo a uma Previdência mais atenta à realidade brasileira, voltada não apenas para os registros formais, mas para as trajetórias reais de quem construiu este país com suas próprias mãos desde a infância.
 
*João Badari é advogado especialista em Direito Previdenciário e sócio do escritório Aith, Badari e Luchin Advogados
 
 
 


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