Cancelamento administrativo de benefícios previdenciários concedidos em juízo

 
Gustavo Filipe Barbosa Garcia*
 
Observa-se certa controvérsia quanto aos benefícios previdenciários decorrentes de incapacidade reconhecidos em juízo, por meio de decisão judicial de mérito transitada em julgado, e a questão de seu posterior cancelamento na esfera administrativa, pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
 
A relação jurídica de direito material em discussão, como é evidente, tem natureza continuativa, ou seja, prolonga-se no tempo. Ainda assim, também nesse caso, no plano processual, a sentença de mérito transitada em julgado produz coisa julgada material , mesmo que presentes especificidades (art. 502 do CPC) .
 
Desse modo, a ação de revisão, conforme art. 505, inciso I, do CPC , por apresentar causa de pedir e pedido diversos, é perfeitamente admissível, uma vez que se trata de demanda distinta, sem afronta à coisa julgada, pois não há tríplice identidade dos elementos da ação (art. 337, §§ 1º, 2º e 4º, do CPC).
 
Na hipótese em que o benefício previdenciário decorrente de incapacidade tenha sido rejeitado em ação judicial anterior, a modificação no estado de fato ou de direito envolvendo o segurado, naturalmente, também permite o ajuizamento de nova demanda, pois o pedido e a causa de pedir são juridicamente diversos, o que afasta a existência de coisa julgada.
 
É preceito elementar, inerente ao Estado Democrático de Direito, que as decisões judiciais devem ser respeitadas, inclusive e especialmente pelo poder público.
 
Nesse sentido, conforme determina o art. 2º da Constituição da República, os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário são independentes e harmônicos entre si.
 
Logo, a discordância relativa ao comando judicial deve ser manifestada na via judicial própria, por meio de recursos e ações autônomas de impugnação, em consonância com o devido processo legal.
 
Vale dizer, se a administração pública pretende que seja alterada a decisão judicial, ainda mais se de mérito e já transitada em julgado, deve se valer dos mecanismos processuais legítimos para impugná-la, no âmbito jurisdicional, não se admitindo que a determinação judicial seja objeto de descumprimento e modificação unilateral na esfera meramente administrativa.
 
Portanto, no caso de benefícios previdenciários decorrentes de incapacidade, quando concedidos por meio de decisão judicial, sem condicionantes e limitação de tempo, o sistema jurídico prevê a ação revisional como o meio processual adequado para o INSS postular o seu cancelamento ou a sua revisão, não sendo permitido que a deliberação administrativa afronte decisão decorrente do exercício imperativo da jurisdição .
 
A questão, como se pode notar, apresenta nítida relevância e manifesta atualidade, tendo em vista a Medida Provisória 739/2016, que alterou a Lei 8.213/1991, sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social, e institui o Bônus Especial de Desempenho Institucional por Perícia Médica em Benefícios por Incapacidade, bem como a Portaria Conjunta 7/2016, do Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário e do Instituto Nacional do Seguro Social, que estabelece procedimentos relacionados à revisão administrativa de benefícios previdenciários por incapacidade.
 
A leitura atenta dessas previsões revela a intenção de se instituir a imediata cessação dos benefícios previdenciários decorrentes de incapacidade, mesmo quando decorrentes de decisão judicial, sem prévia postulação em juízo pelo INSS, nas hipóteses em que a perícia médica, na esfera administrativa, entender pela presença da capacidade profissional, independentemente da anuência do segurado.
 
Como demonstrado, essa postura viola a garantia fundamental da coisa julgada, a qual deve ser respeitada também pela administração pública, sabendo-se que a autoexecutoriedade de certos atos administrativos não se sobrepõe à imperatividade das decisões judiciais.
 
O sistema jurídico, assim, deve ser analisado com isenção e rigor científico pelo intérprete, e não conforme convicções íntimas e eventuais interesses de caráter subjetivo .
 
Embora as normas jurídicas possam envolver certa margem de discussão quanto ao seu verdadeiro sentido e alcance, há preceitos elementares que são exigências pressupostas nas atividades de interpretação e de aplicação do Direito, como a inviabilidade de se modificar unilateralmente, na esfera meramente administrativa, decisões proferidas no legítimo exercício do poder jurisdicional.
 
*Gustavo Filipe Barbosa Garcia é Livre-Docente e Doutor em Direito pela USP. Especialista e Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Sevilla. Membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho. Professor Titular (UDF). Advogado. Foi Juiz do Trabalho, ex-Procurador do MPU e ex-Auditor Fiscal do Trabalho.
 


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