Uber Eats e o bloqueio de entregadores portadores de deficiência auditiva

 
Hugo Fonseca* 
 
Ampliando o seu espectro de participação nas demandas sociais, a empresa Uber, que gerencia plataformas digitais que oferecem serviços de mobilidade e de entrega de comida, tem convocado em suas redes sociais pessoas com deficiência auditiva para compor o quadro de entregadores e motoristas. Para tanto, tem divulgado a adoção de políticas de acessibilidade, especialmente relacionadas à disponibilização de recursos de troca de mensagens de texto, fato que permite a comunicação plena entre os usuários e os entregadores/motoristas surdos.[1]  
 
Não à toa, em comparação entre os anos de 2018 e 2019, a Uber registrou um aumento de 221% no número de parceiros cadastrados na plataforma que afirmam ter deficiência auditiva. As cidades com maior crescimento foram em Belo Horizonte (MG), Belém (PA), São Paulo (SP), Fortaleza (CE), Rio de Janeiro (RJ) e Porto Alegre.[2]
 
Ocorre que alguns destes profissionais têm relatado dificuldades na execução de suas atividades em razão de limitações no próprio aplicativo e denunciado que, em decorrência da ausência de acessibilidade, têm sido punidos com o seu descadastramento sumário.  
 
Não é novidade que tais empresas que gerenciam a prestação de serviços de delivery via plataformas digitais praticam bloqueios arbitrários e indevidos dos cadastrados de entregadores. A realidade é que, mesmo que tenham índices plenamente satisfatórios de avaliações, em muitas ocasiões os entregadores são sumariamente desligados dos aplicativos após uma ou outra pontuação negativa ou, até mesmo, após alguma falha de comunicação com os consumidores e os restaurantes. Nesses casos, as empresas não oportunizam direito de defesa ou, nem mesmo, emite alguma notificação previamente à exclusão do trabalhador. 
 
Daí porque, inclusive, o “fim dos bloqueios indevidos” foi uma das pautas de reivindicação do “breque dos app”, paralização nacional de entregadores de aplicativos que buscava melhores condições de trabalho no ano passado. Estes cortes repentinos das contas dos trabalhadores escancara a precariedade do vínculo dos entregadores com empresas multinacionais que, muito embora exerçam todos os papeis da figura de empregador previstos no artigo 2º, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), tratam seus trabalhadores como meros autônomos ou parceiros, o que representa nítida fraude à legislação trabalhista. 
 
No caso específico dos entregadores portadores de deficiência auditiva, o que se tem narrado é que o aplicativo Uber Eats não disponibiliza ferramenta de comunicação textual com todos os usuários cadastrados. Tal situação faz com que o entregador surdo não consiga se comunicar com o consumidor final e, em algumas ocasiões, fique impossibilitado de concluir a entrega. Quando o profissional não a conclui, pode ser mal avaliado e, consequentemente, descadastrado do aplicativo. 
 
Em ação judicial patrocinada pelo escritório Mauro Menezes & Advogados, o juízo da 4ª Vara Cível da Comarca de Taguatinga (DF) concedeu tutela de urgência para determinar que a Uber Eats, imediatamente, desbloqueie o cadastro de um entregador portador de deficiência auditiva que foi arbitrariamente expulso da plataforma, mesmo possuindo um índice altíssimo de avaliações em mais de mil entregas realizadas.   
 
O entregador narrou que foi demandado no aplicativo para uma entrega e não conseguiu realizá-la, uma vez que o endereço do cliente estava incompleto e razão de o chat (ferramenta de comunicação textual) não estar disponível para diálogo com o consumidor final naquele caso. Apontou que a solução seria a utilização da ligação de voz, mas que isso não seria possível no seu caso, diante da sua deficiência. 
 
Na decisão liminar, a Juíza consignou que a desativação da conta do entregador se deu, aparentemente, de forma arbitrária, tendo em que vista que não precedida do prévio contraditório, tampouco de advertência em relação às condutas concretas que levariam à desativação da conta. Assentiu a Magistrada que, persistindo essas afirmações no decorrer no processo, estará claro que houve violação à boa-fé objetiva, que impunha à Uber Eats os deveres de cuidado e de transparência na condução da relação contratual, notadamente na observância de direitos constitucionais, como o devido processo legal e o direito de defesa, em razão da teoria da aplicação horizontal dos direitos fundamentais às relações privadas. 
 
Complementarmente, a decisão consignou que, em se confirmando que o desligamento do autor decorreu de limitações do aplicativo impostas aos deficientes auditivos, o bloqueio sumário terá sido ainda mais grave, de modo que viola as regras previstas na Lei 13.146/2015, que instituiu a Lei Brasileira da Pessoa com Deficiência. 
 
O julgado destaca, assim, a vedação aos rotineiros descadastramentos realizados pelas empresas de aplicativos de entrega de alimentos, haja vista que, não obstante a natureza privada do contrato entre o entregador e a empresa, aplicam-se os deveres de respeito à boa fé contratual, ao contraditório, ao direito de defesa, dentre outros princípios fundamentais consolidados da Constituição da República. 
 
De fato, independentemente da motivação ou da existência de deficiência, é garantido ao motorista de aplicativo o direito ao contraditório antes da empresa rescindir unilateralmente o contrato, ainda que a entidade seja de natureza privada, pois os direitos e garantias fundamentais previstos constitucionalmente não cedem diante de princípios que regem as relações jurídicas firmadas entre particulares. Aqui temos a aplicação da teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, que foi albergada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), notadamente por ocasião do julgamento do RE 201.819/RJ. 
 
Ademais, de outro lado, a decisão chama a atenção para a realidade de pessoas com deficiência no mercado e trabalho e, nesse sentido, é relevante ao determinar a obrigatoriedade de que os aplicativos gerenciados por empresas como a Uber Eats observem as determinações do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015), o qual, por força do artigo 5°, §3º, da Constituição da República, possui status de emenda constitucional. 
 
Em seus artigos 4º e 5º, a Lei 13.146/2015 assegura que toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades, estando protegida de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, tortura, crueldade, opressão e tratamento desumano ou degradante. Aplicado ao ambiente de trabalho, o Estatuto prevê, especificamente no artigo 34, §1º, que “as pessoas jurídicas de direito público, privado ou de qualquer natureza são obrigadas a garantir ambientes de trabalho acessíveis e inclusivos.” 
 
No caso em questão, a ausência de ferramenta de comunicação textual entre os entregadores e os consumidores é uma comprovação da falta de acessibilidade no aplicativo, o que representa uma nítida exclusão de pessoas portadoras de deficiência auditiva das possibilidades da plataforma, circunstância discriminatória vedada pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência. 
 
Por fim, o que se observa é que seja ao descadastrar indevidamente os entregadores ou ao oferecer um aplicativo com acessibilidade limitada às pessoas com deficiência auditiva, a Uber Eats e outras empresas de gerenciamento de plataformas digitais cometem ato ilícito, gerando aos trabalhadores direito a indenizações por danos morais e materiais a serem buscadas judicialmente. É papel do Poder Judiciário a garantia destes direitos. 
 
*Hugo Fonseca é advogado especialista em Direito do Trabalho e sócio do escritório Mauro Menezes & Advogados 
 
[1] https://help.uber.com/pt-BR/driving-and-delivering/article/como-parceiros-surdos-ou-com-defici%C3%AAncia-auditiva-podem-usar-o-app?nodeId=d1d88d1f-0dcf-4ce8-a3a9-c3955d14c2ff Acesso em 05.03.2021     
 
[2] https://www.librasol.com.br/uber-tem-aumento-de-221-em-motoristas-surdos/ Acesso em 05.03.2021
 


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