Controle de jornada e o vínculo de trabalho dos motoristas com a Uber

 
Raquel Santana*
 
No último dia 04 de março, a Uber divulgou nota anunciando o lançamento de novo recurso em seu aplicativo, por meio do qual haverá a limitação do tempo de trabalho online dos motoristas, considerados pela empresa como “parceiros” na prestação do serviço de transporte de passageiros. A empresa informou ainda, que o referido lançamento se insere em um rol mais amplo de ações que têm por objetivo sensibilizar a sociedade brasileira quanto à segurança no trânsito. Foram mencionadas as campanhas do “Maio Amarelo”, que se destinam a “chamar a atenção da sociedade para o alto índice de mortes e feridos no trânsito em todo o mundo”. 
 
O recurso de limitação do tempo de trabalho na Uber emitirá notificações para sinalizar ao motorista quando ele se aproximar do limite de 12h online conduzindo o veículo em um mesmo dia. Conforme notificou a empresa em seu anúncio, “atingido esse limite, ele [o motorista] será automaticamente desconectado e não poderá utilizar o aplicativo pelas 6h seguintes. Passado esse período, o motorista pode ficar online novamente para receber solicitações de viagem”. Isto é, a partir da nova ferramenta, a Uber passará a controlar a jornada de trabalho dos motoristas, assim como o tempo destinado ao descanso entre as jornadas de trabalho estabelecidas pela própria empresa.
 
A sensibilização voltada à segurança no trânsito também deve se estender às condições de trabalho às quais os motoristas estão submetidos. A partir deste recurso de limitação da jornada de trabalho, a suposta parceria firmada entre trabalhadores e a Uber ganha cada vez mais contornos de verdadeira relação de emprego, embora assim não o seja considerada por este gigante complexo empresarial. Para a empresa que, somente em 2018, realizou mais de 14 milhões de viagens por dia, ao redor de todo o mundo, estando presente em 63 países e mais de 700 cidades, todo o trabalho realizado pelos motoristas particulares se trata somente de uma parceria com a empresa tecnológica.
 
A estipulação unilateral da Uber de jornadas de trabalho e de descanso entre as jornadas materializa-se como uma das formas de exercício do poder diretivo empresarial, tratando-se de ato típico de empregador, em face de seus empregados, conforme determinam os artigos 2º e 3º da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Entretanto, apesar das circunstâncias fáticas em que estão circunscritos os atos praticados pela Uber, seus motoristas seguem trabalhando sem o devido reconhecimento do vínculo trabalhista, razão pela qual não são juridicamente reconhecidos como empregados e, portanto, não lhe são assegurados quaisquer dos direitos sociais albergados pelo artigo 7º da Constituição Federal e pela legislação trabalhista. 
 
No que se refere especificamente aos parâmetros de jornada de trabalho estipulados pela Uber, verifica-se que as 12h de jornada de trabalho e 6h de descanso impostas como parâmetro de jornada contrapõem-se de forma acintosa às normas vigentes no ordenamento jurídico brasileiro, que asseguram aos empregados e empregadas, dentre outras, a duração normal da jornada de trabalho de 8h diárias (art. 58, da CLT c/c art. 7º, XIII, da CF), com um intervalo entre as jornadas de 11h consecutivas para descanso (art. 66, da CLT). 
 
Soluções tecnológicas visando à proteção de motoristas e passageiros no trânsito brasileiro não podem estar alheias à consideração de que os patamares legais e constitucionais acima listados são reflexo de rigorosas normas de saúde e segurança no trabalho, voltadas à garantia de que os trabalhadores estejam submetidos a relações de trabalho também protegidas. 
 
Portanto, as regras impostas pela Uber desvelam uma conduta patronal típica sob o manto discursivo de entrega de soluções rápidas, pautado também em um novo tipo de gestão empresarial que flexibiliza ao extremo as relações de trabalho e cria barreiras ao acesso a direitos sociais trabalhistas. A novidade, anunciada pela própria empresa, coloca em relevo os efeitos da ausência de laços formais de contratação, assim como torna urgente reflexões jurídicas acerca da precarização estrutural dessas relações de trabalho e da consequente desproteção jurídica dos trabalhadores e trabalhadoras da Uber.
 
*Raquel Santana é advogada trabalhista, mestre em Direito, Estado e Constituição (FD/UnB) e sócia do escritório Mauro Menezes & Advogados
 
 
 


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