O trabalho dignifica as crianças?

 
Érica Coutinho*
 
Não é raro o tema do trabalho infantil retornar ao debate público. Nos últimos tempos, voltou-se a discutir com ares nostálgicos o caráter supostamente enobrecedor do trabalho, independentemente da idade de quem trabalha. 
 
A Constituição Federal de 1988 proíbe o trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz e a partir dos quatorze anos. Também é proibido o trabalho noturno, perigoso e insalubre a menores de dezoito anos. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), ao se referir ao trabalho do adolescente na condição do aprendiz, dispõe que a aprendizagem deve respeitar a condição peculiar da pessoa em desenvolvimento e a capacitação adequada ao mercado de trabalho. 
 
No plano internacional, a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança é um importante instrumento de direitos humanos e traz como uma de suas diretrizes a proteção das crianças contra a exploração econômica e contra trabalho que interfira em sua educação ou que seja prejudicial para a sua saúde ou o seu desenvolvimento. 
 
Derivado do compromisso com a proteção à infância e à adolescência, o Brasil ratificou as Convenções 182 e 138 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A primeira trata das maneiras de eliminar as piores formas de trabalho infantil, como aquelas realizadas sob condição análoga à escravidão ou que envolvem recrutamento para prostituição. Por sua vez, a Convenção 138 indica a necessidade de uma idade mínima de admissão ao trabalho com vistas a atender a escolaridade obrigatória. 
 
Os documentos jurídicos que proíbem o trabalho infantil, por si só, não são suficientes para a sua erradicação. O combate a tal forma de trabalho somente é eficaz quando políticas nas áreas de educação, de assistência social, de saúde e de segurança alimentar passam a atuar como medidas de contenção à ocupação precoce. O Bolsa Família, por exemplo, é um programa considerado exitoso como catalisador de redução do trabalho infantil no Nordeste. 
 
Muito embora seja possível mapear avanços no combate ao trabalho infantil no Brasil, ainda há muito a ser feito. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), em 2016, quase dois milhões de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos tinham alguma ocupação, sendo que 47,6% exerciam atividade agrícola. A mesma pesquisa identificou que o rendimento médio mensal de trabalhos realizados por crianças seria estimado em torno de R$ 500.
 
Outra face relevante do trabalho infantil se trata daquele exercido no contexto dos lares e que envolve cuidado com as pessoas. O trabalho infantil doméstico é formado por 94% de meninas, sendo que 73% delas são negras. Essas meninas chegam a trabalhar em jornada de mais de oito horas diárias e acabam exercendo tripla jornada, envolvendo o trabalho, os afazeres domésticos e o estudo. Estima-se que os dados referentes ao trabalho infantil doméstico sejam subnotificados em razão do contexto privado em que o trabalho é exercido.
 
O Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Organização Internacional do Trabalho lançaram recentemente o Observatório da Prevenção da Erradicação do Trabalho Infantil no qual constam dados alarmantes. Quase mil crianças e adolescentes foram resgatadas do trabalho escravo entre 2003 e 2018 e cerca de 17 mil adolescentes, entre 14 e 17 anos, sofreram acidentes de trabalho inclusive com óbito. Mais de dois mil adolescentes sofreram intoxicação, sendo mais de 50% por agrotóxico agrícola. 
 
Todos esses dados dão o panorama da gravidade do contexto da situação no Brasil. Para traçar estratégias de erradicação do trabalho infantil, é importante compreender que a pobreza é a sua verdadeira face. Em processos de pauperização das famílias e do desmantelamento de políticas sociais capazes de garantir renda, as crianças são chamadas à própria subsistência e de sua família de forma inadequada.
 
Nesse sentido, o trabalho infantil funciona como fenômeno que perpetua a pobreza intergeracional e afeta o desenvolvimento das subjetividades das crianças, deixando-as mais vulneráveis às diversas formas de exploração. Crianças que trabalham evadem mais do sistema escolar e têm dificuldades para acessar melhores condições de empregabilidade. 
 
Quem reputa nobre o trabalho infantil, dificilmente, deseja essa realidade para seus próprios filhos. O trabalho infantil é sintoma de uma sociedade injusta e desigual e é o resultado do desemprego e do esfacelamento de nossos pactos civilizatórios. Uma sociedade que tolera que crianças trabalhem lhes nega, muitas vezes definitivamente, o acesso a uma vida digna.
 
* Érica Coutinho é advogada trabalhista, mestre em Direito e Políticas Públicas e sócia do escritório Mauro Menezes & Advogados
 
 
 
 


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