Planos de saúde devem cobrir o congelamento de óvulos em pacientes com câncer

 
 
Mayara Rodrigues Mariano*
 
O avanço da medicina oncológica tem proporcionado não apenas maior sobrevida aos pacientes, mas também a possibilidade de preservar sua qualidade de vida após o tratamento. Nesse contexto, a preservação da fertilidade, por meio do congelamento de óvulos em mulheres submetidas à quimioterapia ou radioterapia, revela-se medida essencial, uma vez que tais terapias frequentemente acarretam infertilidade irreversível. Diante dessa realidade, ganha relevância o debate sobre a obrigação das operadoras de planos de saúde em custear esse procedimento.
 
Sob a ótica constitucional, a resposta encontra respaldo no artigo 196 da Constituição Federal, que consagra o direito à saúde como dever do Estado e, por extensão, impõe sua observância a todos os agentes privados que atuam no setor. A dignidade da pessoa humana, prevista no artigo 1º, inciso III, e o planejamento familiar, assegurado pelo artigo 226, §7º, reforçam a compreensão de que a saúde reprodutiva integra o núcleo essencial dos direitos fundamentais, não podendo ser relativizada por interesses econômicos ou contratuais.
 
No plano infraconstitucional, a Lei nº 9.656/98 (Lei dos Planos de Saúde) impõe às operadoras a obrigação de garantir cobertura para o tratamento de todas as doenças constantes na Classificação Internacional de Doenças (CID). Sendo o câncer enfermidade incontroversa nessa lista, todos os meios terapêuticos necessários ao seu enfrentamento, bem como à contenção de seus efeitos colaterais previsíveis, devem ser abrangidos pela cobertura. Assim, a infertilidade decorrente da quimioterapia configura consequência direta e previsível da terapêutica oncológica, não podendo ser dissociada do tratamento principal.
 
A aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC), conforme pacificado pelo Superior Tribunal de Justiça na Súmula 608, impõe análise ainda mais rigorosa das cláusulas contratuais. O artigo 51, inciso IV, do CDC reputa abusiva qualquer estipulação que importe renúncia de direito essencial do consumidor — o que inclui a vedação de exclusões de cobertura que inviabilizem tratamento necessário e prescrito por profissional habilitado.
 
A jurisprudência do STJ reforça essa interpretação ao reconhecer, de forma reiterada, que o rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) possui caráter exemplificativo, e não taxativo. No REsp 1.733.013/SP e no REsp 1.889.704/SP, a Corte assentou que tratamentos indispensáveis ao enfrentamento da enfermidade, ainda que não previstos expressamente no rol da ANS, devem ser custeados pelas operadoras — sob pena de esvaziamento da finalidade contratual. Os Tribunais de Justiça, em especial o TJSP, têm seguido o mesmo entendimento, reconhecendo a obrigatoriedade do custeio do congelamento de óvulos em pacientes oncológicas, por considerá-lo parte integrante do tratamento global da neoplasia.
 
Sob o prisma bioético, eventual negativa de cobertura representa não apenas discriminação de gênero, mas também afronta ao direito à autonomia reprodutiva e ao livre planejamento familiar. O congelamento de óvulos, nessa hipótese, não se qualifica como procedimento estético ou eletivo, mas como medida preventiva destinada a resguardar a função reprodutiva diante dos efeitos previsíveis da terapêutica oncológica.
 
*Mayara Rodrigues Mariano é advogada e sócia do scritório Mariano Santana Sociedade de Advogados
 


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