Uma outra reforma previdenciária é necessária

 
José Ricardo Caetano Costa*
 
Pretendemos, a partir deste texto extremamente objetivo e com um viés de fácil compreensão, demonstrar as inverdades e inconsistências trazidas no bojo da PEC n. 287/16, o que coloca em risco não somente o pacto intrageracional mas também o intergeracional.
 
A começar pela unificação dos regimes previdenciários, nada a obstar caso não fosse calcado em um teto por baixo, tornando desatrativa qualquer carreira pública, o que comprometerá paulatinamente a qualidade dos serviços públicos prestados pelo Estado brasileiro. Afora isso, os militares não ingressam nas regras novas, e o que é pior, resta intocável os salários e proventos recebidos pelo Poder Judiciário, Executivo e Legislativo: não é possível que rubricas tais como o “auxilio-moradia” e outros tantos perduricários venham a ser pagos pela coletividade através de um imposto indireto que sobrecarrega justamente a parcela mais pobre da população.
 
Por certo que não podemos ser contra a disparidade de salários e de proventos existentes no Brasil. É inconcebível que o salário total, pois isso é o que importa, de qualquer servidor público seja absurdamente maior que o salário mínimo do trabalhador. Isso não só é razoável mas ofende o princípio da JUSTIÇA SOCIAL.
 
Ora, se é correto firmarmos um pacto nacional para rever o sistema, e penso que ninguém é contra isso, ele deve começar por corrigir estas distorções, além de investir na arrecadação do sistema, como veremos adiante.
 
Também deve ser questionada a idade pesada dos 65 impostos à aposentadoria ordinatória. Se os dados do IBGE apontam que esta expectativa de vida cresceu 25 anos nos últimos 40 anos, também é verdade que a população que utiliza realmente o sistema de previdência do RGPS, cuja renda média é de pouco mais de R$ 1.000,00 (segundo dados do próprio INSS), deve ser analisada de forma particularizada. Não é possível aplicar o mesmo índice para um morador no luxuoso bairro do Jardins, rico, ao Jardins pobre e desprovido das políticas públicas de segurança e proteção social. Simples: basta tomar os dados, de preferência regionalizados, existentes no próprio sistema da DATAPREV, para, a partir daí, começarmos a pensar em outras alternativas de aumento de idade. E mais: não pode ser abstraída todas as demais circunstâncias concretas em que a majoritária parcela da população vive.
 
O mais capcioso neste ponto da idade é que, segundo a PEC da Posteridade proposta, é o fato de o trabalhador ter que contribuir por no mínimo 49 anos para que possa receber os 100% do benefício. Não é racional nem justo, na realidade brasileira, essa imposição contributiva.
 
No que respeita à acumulação dos benefícios, seja de duas aposentadorias, seja destas com uma pensão por morte, o afronta ao direito adquirido é latente, mormente quando se tratam de fontes de custeio distintas: se um professor possui um regime de 20 horas, por exemplo, enquanto servidor público, e outro labor de 20 horas em  regime privado, o que é bastante comum pelos baixos salários pagos aos professores (e também aos enfermeiros e tantos outros profissionais), terá que optar por uma das aposentadorias. Não poderá receber pelas duas contribuições vertidas. Ninguém justifica razoável e juridicamente essa possibilidade.
 
No caso da pensão por morte não poder cumular com a aposentadoria é tão gritante quanto. Além de cair para 50% do valor, deixa ao desabrigo justamente a família, cuja proteção e promoção está amparada no art. 226, da CF/88. Ademais, a desvinculação do salário mínimo proposta pode reduzir a valores insignificantes os valores da pensão. Os aposentados e pensionistas da Previdência Social que recebiam, em passado não distante, mais que o salário mínimo são testemunhas desse processo de corrosão dos proventos.
 
Ao depois, o ataque frontal aos benefícios dos trabalhadores rurais e à população vulnerável que depende dos benefícios assistenciais da LOAS para proverem os mínimos sociais dão visibilidade concreta à intenção do governo atual, que não discutiu minimamente esta PEC proposta, no intento que lhe anima.
 
Quando prevê uma alíquota direta para a contribuição dos rurícolas, a PEC da Posteridade afronta o art. 194, incisos II e V da CF/88, que prevê o tratamento equânime destes trabalhadores, especialmente no que respeita ao custeio do sistema, como também afronta diretamente o artigo 5º, inciso II, também da CF/88, que instituiu o sistema de isonomia, leia-se igualdade substancial e não meramente formal, no trato dos direitos dos trabalhadores rurais.
 
É certo que desde o Livro Branco da Previdência Social, de 1997, em que os trabalhadores rurais aparecem como sendo os grandes responsáveis pelo suposto “rombo” do sistema previdenciário, a cada reforma do sistema são novamente citados com pechas estigmatizantes e discriminatórias, como aqueles que não contribuem para o sistema.
 
Torna-se ainda mais grave essas assertivas quando a mulher trabalhadora rurícola passa a ter a mesma idade de aposentadoria do que o trabalhador rural, mormente quando a sobrecarga de trabalho que lhe racai não é alterada.
 
Com efeito, a Reforma proposta pela PEC não é somente previdenciária, eis que altera significativamente o único benefício de prestação continuada previsto na LOAS, para os idosos e os deficientes que não possam prover seus sustentos. Neste sentido, é proposto dois pontos que queremos destacar como nocivos: primeiro, o fato de a idade subir dos 65 anos atuais para os 70 anos, em aumento gradativo de um ponto a cada dois anos, e, segundo, o fato de ser desatrelado do salário mínimo. O retrocesso social neste direito é evidente. Isso porque, quando da promulgação da Lei n. 8742/93, a idade mínima era justamente 70 anos, vindo a ser reduzida para 67, até chegar aos 65 anos atuais. Não é possível retrocesso nesse sentido, mormente quando são justamente os mais pobres e vulneráveis que dele precisam para sobreviver. Ademais, desvincular o BPC assistencial do salário mínimo é, tal como ocorrerá na pensão por morte caso a PEC for aprovada nestes termos, não garantir a provisão das comezinhas necessidades humanas.
 
Todo o desiderato constitucional de redução das desigualdades sociais (art. 3º, III),bem como do resguardo da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III) e a garantia de um salário mínimo (art. 7º, inciso IV) para prover os mínimos sociais e existenciais (art. 203, V), também não resiste e sucumbe.
 
Desse modo, não há dúvida que a PEC 287/17 afronta o disposto no artigo 60, § 4º,da Constituição Federal, que institui como cláusula pétrea a proteção dos direitos fundamentais individuais, entre os quais se encontram os direitos sociais, bem como o artigo 2º do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, a qual o Brasil é signatário, que por sua vez institui que os direitos sociais não podem nunca retroceder, mas somente avançar.
 
Por fim, a inverdade do suposto “déficit” do sistema, inexistente desde sempre, bastando um exame nas pesquisas realizadas pela ANFIP e outros institutos de pesquisas, não pode ter o condão de retroceder os direitos sociais de forma arbitrária, pois sem discussão com nenhum setor da sociedade.
 
Certo que é necessário repensar o sistema, a partir de premissas calcadas na JUSTIÇA SOCIAL e na equidade, o que somente será possível se atacada a raiz do problema: a disparidade de salários e proventos existentes no Brasil, aliado a um problema visceral no processo arrecadatório, representado pelas renúncias fiscais, pela exoneração das folhas depagamento, afetando diretamente a arrecadação), pela DRU (que aumentou este ano para 30%), pela sonegação de impostos, pela não cobrança dos grandes devedores da Previdência Social, pela certificação de filantropias de fachadas e tantas outras medidas que representariam o ingresso dos valores devidos à Seguridade Social como um todo.
 
*José Ricardo Caetano Costa é doutor em Serviço Social (PUCRS) e professor adjunto da FADIR/FURG.
 


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