Marco Aurélio Serau Junior: A minirreforma previdenciária introduzida pela Medida Provisória 664


Marco Aurélio Serau Junior*

Esta coluna analisa as principais alterações legislativas introduzidas no universo previdenciário pela Medida Provisória 664, de 30.12.2014, uma verdadeira microrreforma previdenciária, alterando substancialmente os benefícios do auxílio-doença e da pensão por morte.

A primeira grande crítica às alterações previdenciárias trazidas pela Medida Provisória em tela diz respeito à sua total falta de legitimidade. Produziu mudanças de tal envergadura que não seriam cabíveis dentro do instrumento excepcional e pouco democrático das Medidas Provisórias. Se ainda não se pode falar da sua inconstitucionalidade – o que enseja maiores e mais aprofundados estudos – deve-se questionar a validade democrática dessas alterações.
Em primeiro lugar deve ser recordado que no cenário eleitoral de 2014 o Governo Federal, então em campanha, prometeu não “mexer nos direitos dos trabalhadores, nem que a vaca tussa” e sinalizou, no campo previdenciário, inclusive com possível extinção do fator previdenciário.

Transcorrido o pleito eleitoral, contudo, a sensação de oportunismo é grande, pois tais medidas foram proferidas em 30.12.2014. E os temas veiculados constituem importantes decisões políticas a serem tomadas, o que exige, sempre, amplo diálogo social com os setores sociais atuantes na matéria ou, ao menos, com representantes de trabalhadores, sindicatos e associações de pensionistas e aposentados, além de ambiente democrático para deliberação - no mínimo a atuação parlamentar para alteração tão radical da matéria.

O sentimento de rejeição face tais alterações legislativas também decorre do fato de que abundam concessões econômicas e mesmo crédito para outras atuações governamentais, como megaprojetos e megaeventos esportivos, mas sempre se olvida da cobertura previdenciária, a qual, não deixa de ser em parte política de redistribuição de renda e de desenvolvimento social do país.

Em relação ao auxílio-doença, a alteração promovida pela MP 664/14 consiste, basicamente, no aumento do período a partir do qual o afastamento do trabalhador em virtude de incapacidade laboral transitória passa a ser um encargo do INSS.

Na legislação anterior cabia à autarquia previdenciária pagar o auxílio-doença após quinze dias de afastamento em virtude de incapacidade laboral, sendo os quinze primeiros dias de afastamento um ônus trabalhista das empresas; a partir de agora, o auxílio-doença é devido pelo INSS somente nos casos de afastamentos superiores a trinta dias, sendo que estes primeiros trinta dias ficam a cargo da empresa.

Esse pequeno aumento de lapso temporal,  embora pareça singelo, não é tão neutro como aparenta. Não se trata apenas de medida de eficiência de gestão e provocará, de imediato, duas consequências bastante graves.

A primeira consequência é o agravamento da dificuldade para a obtenção, pura e simples, do benefício do auxílio-doença. A perspectiva de que o INSS custeará o auxílio-doença somente após trinta dias de afastamento do trabalho, período em que o ônus financeiro fica a cargo do empregador, proporcionará uma efetiva redução da concessão desse benefício.

A desresponsabilização do Estado praticada pela Medida Provisória 664/14 é capaz de ensejar uma reação inconsciente, e perigosa, no sentido da diminuição da constatação de situações de incapacidade laboral, pois cogitamos um aumento do quadro de adoecimento geral dentro do âmbito das empresas e majoração do percentual de demissões motivadas por questões de saúde, face às exigências do mercado cada vez mais competitivo.

A segunda consequência importante e imediata, no caso do auxílio-doença, é a transferência de mais um ônus financeiro à iniciativa privada, agora responsável pelo pagamento de trinta dias de afastamento do trabalhador por motivo de saúde, no lugar dos anteriores quinze. Medida certamente indesejada, que chega em um momento onde se discute fórmulas para aquecimento da economia e expansão do emprego.

Também deve ser criticada a nova forma de cálculo do auxílio-doença, agora uma média dos últimos 12 salários-de-contribuição, o que implica tendência de redução no valor entregue ao segurado.

Falemos agora sobre o benefício previdenciário da pensão por morte, de longe aquele que mais sofreu transformações com a minirreforma previdenciária aqui analisada.
Passa-se a exigir carência de dois anos para o segurado, o que ainda pode ser justificado como um requisito técnico-previdenciário de ajuste estrutural do sistema.
De outra parte, a novel exigência de dois anos de casamento ou união estável para a concessão da pensão por morte é assunto carregado de falso moralismo, tarifando, por uma medida arbitrária de tempo, qual é o tipo de relação conjugal (seja ela mais breve ou mais longa, etc.) que é válida para a concessão de um benefício previdenciário relevantíssimo como a pensão por morte. Notamos aqui uma indevida inserção na seara íntima das pessoas, com repercussões em termos de cobertura previdenciária.

É certo que sempre se poderá alegar a existência de casamentos forjados, com o único intuito de fraudar a autarquia previdenciária, bem como situações popularmente conhecidas como a das “viúvas negras”, mas esse tipo de episódio deve ser tratado no caso concreto, sob a hipótese de que as fraudes e a má-fé são excepcionais e devem ser comprovadas. São elementos que não devem aparecer como estruturantes de um benefício previdenciário de impacto social tão importante como a pensão por morte, que a sociedade brasileira considera como um direito previdenciário mínimo.

Outro assunto importante a ser criticado é a mudança paradigmática operada na exigência de comprovação de dependência econômica, que passa a valer também para casados e pessoas em situação de união estável.

Entendemos inviável tal exigência, pois o Direito de Família já estabelece um conjunto sólido de regras que impõe, dentro da vigência do casamento, inúmeras obrigações de compartilhamento de responsabilidades e direitos, de sorte que a dependência econômica acaba por ser algo ínsito à instituição familiar. Nestes termos, tal norma apresenta inconstitucionalidade, por violação ao art. 226, da Constituição Federal, e também a diversos dispositivos importantes do Código Civil.

Por fim, o término programado do benefício da pensão por morte, quesito este nunca dantes introduzido em nosso sistema de proteção social, é mais do que aviltante. Sendo a majoritária parcela dos percepientes da pensão por morte pessoas pobres, não é possível que a expectativa de vida colhida nacionalmente pelo IBGE norteie o tempo de gozo deste benefício.

Não é nenhum trabalho de criação intelectual pensarmos nos casos concretos e corriqueiros vivenciados pelas pensionistas (mulheres), com o óbito dos seus conviventes: permanecem com filhos menores, necessitando do pensionamento previdenciário para prover as comezinhas necessidades da prole. A duração de poucos anos da pensão paga pela Previdência Social aumentará a angústia, miséria e desespero de milhares de pensionista, quando de sua cessação.

A análise que procuramos expor  nesta Coluna demonstra a gravidade das alterações normativas introduzidas no universo previdenciário pela Medida Provisória 664/2014.
Ademais, não há nenhum fundamento sério na microrreforma previdenciária ora trazida pelo Governo Federal, sem qualquer discussão com a sociedade brasileira e os movimentos sociais, sendo visível tratar-se de mero ajuste fiscal, em amplo prejuízo à proteção social almejada pela população.

* Marco Aurélio Serau Junior é Mestre e Doutorando em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo (USP), onde pesquisa o acesso à justiça na área previdenciária e os meios alternativos à solução do conflito previdenciário. Especialista em Direito Constitucional (Escola Superior de Direito Constitucional). Especialista em Direitos Humanos (USP). Professor universitário e de cursos de pós-graduação. Autor de diversos artigos jurídicos publicados no Brasil e no exterior, além de diversas obras. Colaborador e colunista do Portal Previdência Total - [email protected]



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