Reforma da Previdência: uma pausa necessária no novel artigo 201 da CF/88

 
José Ricardo Caetano Costa*
 
Trazemos, no presente artigo, uma reflexão crítica de alguns dispositivos constantes no texto da PEC em comento, resultante de uma votação com bastante folga ao Executivo que a propôs: foram 379 votos a favor contra somente 131 em sentido contrário. 
 
Não nos interessa, nesta análise, ingressar na legitimidade do processo legislativo-político, diante dos volumosos recursos às emendas parlamentares buscando “animar” os parlamentares, bem como em outros meandros, cujo choro copioso do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, quiçá seja o ato simbólico mais representativo deste processo. 
 
Interessa-nos, isto sim, avaliar quais são os efeitos práticos de várias normativas inseridas no Texto vitorioso(?) até o momento. Não podemos perder de vista, ainda mais em se tratando de direitos sociais fundamentais como o são os de feição previdenciária e assistencial, que está em jogo a própria manutenção e subsistência dos cidadãos mais vulneráveis e precarizados.
 
Começamos, portanto, com uma análise principiológica e hermenêutica da alteração trazida ao artigo 201 da CF/88. Veja-se que pela redação anterior foram eleitos cinco campos, ou blocos protetivos, a saber: “I – cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada; II – proteção à maternidade, especialmente à gestante; III – proteção ao trabalhador em situação de desemprego involuntário; IV – salário-família e auxilio-reclusão para os dependente dos segurados de baixa renda e, V – pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes...”
 
Veja-se que dos cinco eixos protetivos restaram somente três, quais sejam: a) cobertura dos eventos de incapacidade temporária ou permanente para o trabalho e idade avançada; b) salário-maternidade e, c) pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou ao companheiro e aos seus dependentes, observado o disposto no § 2º quando se tratar de única fonte de renda auferida pelo conjunto de dependentes.
 
Necessário dizer que não se trata de uma análise quantitativa apenas. Dizer que tínhamos cinco eixos protetivos e agora são minguados três pouco acrescenta ao debate que temos a obrigação de fazer.
 
Ocorre que a questão é bem mais profunda e complexa. 
 
A começar pelo primeiro tópico, enquanto no anterior, cujo texto já tinha sido alterado pela Emenda Constitucional n. 20/98, constava a proteção em face de eventos oriundos da “doença”, “invalidez”, “morte” e da “idade avançada”, neste temos tão somente a cobertura dos eventos trazidos pela “incapacidade temporária ou permanente para o trabalho’, bem como a idade avançada.
 
Com efeito, a escassez de proteção salta aos olhos: quando dissemos que a cobertura se fará para os incapazes temporariamente ou permanente para o trabalho estamos a dizer que esta proteção é somente para quem trabalha. Sim! Ocorre que a proteção previdenciária, desde o seus nascedouro, no mundo e no Brasil, busca a proteção também – e essencialmente, para todos os que não participam do mundo do trabalho. Citamos alguns exemplos corriqueiros: os estudantes, acima dos 16 anos que querem aderir ao sistema; as trabalhadoras em âmbito residencial, que laboram, e muito, mas não detém a condição de seguradas obrigatórias como empregadas, além dos desempregados. Veja-se que grave, mormente quando os dados oficiais apontam pelos 13 milhões de desempregados formais, cuja única forma de manutenção de seus direitos previdenciários é justamente a contribuição como segurados facultativos para o sistema público contributivo. 
 
Não há dúvidas que a forma como restou redigido o artigo 201, caput e seus três incisos, excluiu essa gama imensa de segurados, especialmente os facultativos, restringindo o direito de participação dos benefícios por doença, uma vez que não estão trabalhando. Aliás, como é curial, se trabalhassem estariam contribuindo e não usariam esta modalidade de aderência ao sistema. 
 
Quem advoga com as demandas previdenciárias pode testemunhar como muitos peritos médicos, diante dos efeitos deletérios do denominado “pente-fino”, estão tratando os segurados facultativos. É muito comum encontrarmos laudos periciais apontando que as seguradas apresentam as patologias, mas podem desempenhar as atividades domésticas, do lar. Justificam, inclusive, dizendo que as “donas de casa” - expressão infeliz para designar as trabalhadoras em âmbito residencial, uma vez que todos são os donos de suas casas - podem exercer seus misteres pois possuem a faculdade de escolher o que e como fazer suas tarefas diárias. Lamentável interpretação, no mais das vezes acatadas pelos julgadores e julgadoras dos Juizados Especiais Federais que acatam, sem qualquer análise crítica, os resultados dos laudos periciais que apontam pela capacidade laboral.
 
Aliás, a própria redação da regra é confusa e imprecisa. Veja-se que não existe mais no sistema, há décadas, uma incapacidade permanente. A aposentadoria por invalidez deve ser periodicamente revista e, cessada as condições que a ensejaram, deve deixar de ser concedida. As ações periciais desencadeadas pelo INSS, por meio do famigerado “pente-fino”, escancarou às vísceras como essa possibilidade pode ser perversa quando não obedecido o devido processo legal e a ampla defesa. 
 
Adrede, quando o disposto no inc. III, na redação anterior, protege o trabalhador em situação de desemprego voluntário, não está somente a assegurar o seguro-desemprego, mas também a garantir que os desempregados terão a proteção social devida. 
 
Ainda, em lamentável retrocesso social, desaparece a proteção à maternidade, com olhar especial à gestante, para dar lugar a um “salário-maternidade” apenas. Não bastasse, também o salário-família e o “auxilio-reclusão (ambos já restritos aos segurados de baixa renda, nos termos da EC n. 20/98), desaparecem do rol de proteção social.  
 
Dentro desta sistemática trazida pela PEC n. 6/19, sequer as sequer as viúvas dos segurados, condicionando à fonte de renda única de todos os dependentes do segurado como forma de manter a integralidade. 
 
Por certo que esta regra atingirá uma parcela sensível da população que depende do seguro social para manter um mínimo de dignidade. Não está-se a atacar qualquer privilegiado. Pelo contrário, a regra contribuiu para a fragilização e vulnerabilidade da própria família, das crianças e adolescentes que imprescindem da verba previdenciária alimentar.
 
Percebe-se, também neste caso, uma séria restrição a direitos reconhecidos inclusive no âmbito do direito internacional. Veja-se que a norma aprovada excepciona a “deficiência intelectual, mental ou grave” como forma de manutenção da pensão em seu valor integral.
 
Há de se perquirir, com esteio na Convenção de Nova Iorque (2007), que ingressou em nosso sistema normativo pátrio com de norma constitucional (Decreto Legislativo n. 186/08 e Decreto Executivo n. 6949/09) e do Estatuto do Deficiente - Lei n. 13.146/15), aonde estarão os deficientes físicos (quiçá a maioria em nosso Pais), bem como os sensoriais, uma vez que não contemplados no texto aprovado em primeiro turno pelo Congresso Nacional? 
 
Estas questões, à luz dos princípios do retrocesso social e da preservação da confiança, para citar somente dois princípios que minimamente devem ser respeitados em qualquer processo que pretenda alterar os direitos fundamentais sociais fruto do processo constituinte, devem ser refletidas e, ao nosso ver, sopesadas ainda pelos Deputados e Senadores de nosso País. 
Afinal, este é justamente o papel que não somente espera-se deles, mas exige-se de seus misteres legislativos.
 
* José Ricardo Caetano Costa é Doutor em Serviço Social pela PUCRS e Professor Adjunto da Universidade Federal de Rio Grande (FURG). Advogado Previdenciarista. 
 


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